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Pintura de Locatelli expõe exclusão do negro na construção do mito do gaúcho

O painel “A Formação Histórico-Etnográfica do Povo Riograndense” não apresenta o negro como um elemento constitutivo dessa formação. (Fo...

O painel “A Formação Histórico-Etnográfica do Povo Riograndense” não apresenta o negro como um elemento constitutivo dessa formação.
(Foto: Guilherme Santos/Sul21)


Marco Weissheimer

No dia 8 de agosto de 1951, o Diário Oficial do Estado do Rio Grande do Sul publicou, por intermédio da Secretaria dos Negócios das Obras Públicas, um edital de concorrência pública para um serviço de pintura interna de três salas da ala esquerda, no pavimento superior do Palácio Piratini. O artista Aldo Locatelli foi o escolhido para executar o trabalho que consistia em murais de grande porte sobre temas ligados à história do Rio Grande do Sul, como a formação etno-historiográfica do povo riograndense e a “mais bela das lendas gaúchas”, como descreveu Arthur Ferreira Filho, em “Palácio Piratini” (Porto Alegre: IEL, 1980). As obras resultantes desse edital carregam escolhas e uma ausência que problematizam a proclamada “identidade do povo gaúcho”, construída ao longo das últimas décadas.

As escolhas: o painel “A Formação Histórico-Etnográfica do Povo Riograndense”, que se encontra no Salão Alberto Pasqualini, do Palácio Piratini, traz como elementos dessa formação os índios, as Entradas e Bandeiras, as Missões, as fazendas de agricultura e pecuária, o gaúcho e o progresso, representado pela energia elétrica e uma represa. A ausência: o negro não aparece como elemento constitutivo da “formação histórica-etnográfica do povo rio-grandense”. A representação do negro aparecerá em outro painel, aquele que retratará “a mais bela das lendas gaúchas”: o Negrinho do Pastoreio. Ou seja, aparece como a representação de uma lenda e não como um elemento constitutivo da “formação da identidade gaúcha”.
 
 
A representação do negro aparecerá em outro painel, que retratará o que se chamou na época de “a mais bela das lendas gaúchas”: o Negrinho do Pastoreio.
(Foto: Guilherme Santos/Sul21)

A percepção de uma ausência

Ao participar de uma visita guiada ao Palácio Piratini, no último dia 18 de julho, o cartunista Carlos Latuff percebeu essa ausência na pintura de Locatelli, que passa despercebida pela maioria dos olhares. Ao refletir sobre essa ausência, Latuff observou que o painel “A formação histórico-etnográfica do povo rio-grandense” é uma imagem que define o estado gaúcho. “Ali são citados os colonizadores portugueses, os indígenas, os bandeirantes, os imigrantes. No entanto, os negros são omitidos. Não surgem nem mesmo como escravos, num estado onde, nos idos do século XVIII, a produção de charque dependia basicamente de mão-de-obra escrava. Em 1780 os negros escravos eram 28% da população, e em 1814, 31%. Portanto, a omissão do negro numa pintura tão representativa não foi por engano”, afirma Latuff.

Resta saber, assinala ainda o cartunista, “se isso se deve a influência da educação fascista na formação de Aldo Locatelli (que inclusive serviu como combatente nas tropas de Mussolini no Norte da África durante a Segunda Guerra Mundial) ou se foi determinação do governo gaúcho, na época tendo a frente Ernesto Dorneles, primo de Getúlio Vargas, que era empossado como presidente do Brasil pela segunda vez”. A resposta a essa pergunta, conclui Latuff, pode ajudar a entender o racismo que ainda persiste no Rio Grande do Sul, seja ele de caráter sóciocultural ou mesmo como política de estado.
 
A historiografia do período no Rio Grande do Sul ignorava a presença do negro como elemento constitutivo da formação da identidade gaúcha.
(Foto: Guilherme Santos/Sul21)

A exclusão do negro na história

Segundo Luciana da Costa de Oliveira, doutoranda em História na Pontifícia Universidade Católica (PUC-RS) e autora de uma dissertação de Mestrado sobre o Rio Grande do Sul de Aldo Locatelli (arte, historiografia e memória regional nos murais do Palácio Piratini), a ausência do negro na tela em questão deve ser entendida dentro do contexto intelectual e historiográfico do Estado naquele período. A historiografia de então, assinala a pesquisadora, ignorava a presença do negro como elemento constitutivo da formação da identidade gaúcha. Esse quadro só vai ser alterado a partir da década de 1980, como o trabalho de pesquisadores como Mário Maestri. Em sua dissertação, Luciana de Oliveira escreve:

“Nas décadas de 1940 e 1950, essa figura [do negro] não estava incorporada à história, à cultura e à mistura étnica gaúcha. Dessa maneira, a inexistência da imagem do negro no mural está intimamente relacionada ao ambiente intelectual em que Locatelli encontrava-se inserido (…) Os dois autores que aqui foram tomados por base e que Locatelli esteve mais próximo (Manoelito de Ornellas e Érico Veríssimo) não citam ou desconsideram a participação do negro como elemento formador, uma vez que ele só aparece como mão de obra produtiva”.

O período da contratação de Aldo Locatelli pelo governo do Estado e da realização das pinturas no Palácio Piratini é marcado, entre outras coisas, pela construção da ideologia do gauchismo, da figura do gaúcho mítico, ainda muito presente no Rio Grande do Sul. É o período, por exemplo, da institucionalização dos Centros de Tradições Gaúchas (CTGs). A representação artística de Locatelli, assinala ainda Luciana de Oliveira, procurou integrar esse discurso identitário promovido pelo governo do Estado nas décadas de 1940-50. Os temas centrais dessa representação são: a visão das Missões Jesuíticas e dos Bandeirantes do mundo antigo; Criação de fazenda de gado; A Família como unidade humana; O trabalho no campo; Colonização e Agricultura; Produção e riqueza. Conforme observa a pesquisadora:

“Os aspectos históricos e formativos, que foram plasmados através das figuras dos portugueses, dos bandeirantes e dos índios das Missões, aparecem em maior destaque na parte superior da obra. A cultura e a sociedade sul-rio-grandense foram representadas pela figura mítica do gaúcho, possuidor de todos os simbolismos que, ao longo do tempo, foram sendo agregados a ele e, identitariamente, a todo o povo rio-grandense”.

O negro está totalmente excluído dessa representação.
 
Discurso idílico e fantasioso construído nas décadas de 40 e 50 forjou uma identidade gaúcha repleta de lacunas, desconexões, omissões e branqueamentos.
(Foto: Guilherme Santos/Sul21)


Fantasias e traumas em relação à herança e à identidade

No artigo “Herança e mecanismos psíquicos” (*), os psicanalistas Mario Fleig e Conceição Beltrão apontam os transtornos que acompanham os tratamentos de temas como herança cultural e identidade, no contexto do projeto da “conquista espiritual da América”, nascido da Contra-Reforma. Invariavelmente o destino a ser dado a uma herança, assinalam os autores, se transforma num transtorno e mesmo num problema insolúvel. O que é feito com a relação com o ancestral, com a herança, é determinado “pela forma como cada descendente se constrói a partir de sua fantasia em relação à sua filiação”. No caso do Rio Grande do Sul, assinalam, essa experiência iniciou em 1626, quando o Padre Roque González fundou a primeira redução jesuítica.

Prestando atenção na forma como essa história é contada hoje, observam Fleig e Beltrão, é impossível estabelecer uma conexão entre o período histórico do projeto missioneiro e a história da região após a guerra guaranítica que pôs fim às Missões. “Quando é perguntado sobre a relação entre o projeto missioneiro e a história dos atuais habitantes da região, inicialmente não parece que a pergunta surpreenda, mas que incida sobre uma lacuna”, escrevem. Há dois momentos históricos relatados de forma inteiramente dissociada e sem conexão. Ou, dito de outra forma, há “a construção de uma lacuna entre o período da fundação jesuítica e a chamada fundação europeia, com a chegada dos alemães”.

Essa desconexão, assinalam ainda os autores, está presente no discurso dessa cultura e pode ser “um resquício da política de branqueamento da raça difundida pela história oficial construída a partir do Segundo Império”. O processo de construção de uma identidade cultural neste período histórico repousa sobre o que eles chamam de “uma fundação efetivada através de atos de violência, ou seja, um assassinato”. “Na medida em que os antepassados promoveram um genocídio, os descendentes, frente a este ato narcisicamente insuportável, paradoxalmente o repetem através da não-conexão entre as duas fundações e da repetição do traço do discurso do colonizador. Nessa região, os imigrantes alemães e italianos não se encontram, subjetivamente, na posição de colonos, mas sim de colonizadores, reeditando em outras partes do país a conquista de terras e a luta contra índios e posseiros”, concluem.

O artigo de Mario Fleig e Conceição Beltrão talvez forneça algumas categorias para se pensar a omissão no quadro de Locatelli. Uma delas é a “forma como cada descendente se constrói a partir de sua fantasia em relação à sua filiação”. O edital que deu origem aos painéis de Locatelli foi elaborado a partir de um projeto de construção de um discurso identitário promovido pelo governo gaúcho nas décadas de 1940 e 1950. Neste discurso, como se vê na tela do artista, o negro não é um elemento constitutivo da “formação histórico-etnográfica do povo rio-grandense” e sua figuração aparece como representação de uma lenda. Outra é a desconexão entre períodos históricos. O que justifica, como aponta Latuff, a omissão no quadro de Locatelli, num Estado onde os negros escravos eram 28% da população, em 1780, e 31% em 1814? Talvez uma fantasia em relação à própria filiação, fantasia esta que segue presente em um discurso idílico de uma identidade gaúcha repleta de lacunas, desconexões, omissões, branqueamentos e muitas mortes.

(*) In. “Imigração e Fundações”/Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2000 (Coleção Letra Psicanalítica).


Fonte: Portal Sul 21
 

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